Políticos falam torto por linhas certas. Raramente dizem o que pensam e, quando o fazem, deixam uma porta aberta para mudar de ideia.
Há um movimento de tucanos ligados a Geraldo Alckmin propondo lançar João Doria a governador. É provável que seja apenas jogo de cena: o prefeito não vai sair, já prometeu ficar até o fim do mandato, mas, para não parecer derrotado, os aliados pedem, criam clima e, por fim, ele diz que não é candidato.
Ou não: a candidatura é lançada, os adversários pensam que é jogo de cena e, no final, é tudo verdade... Lá vai a cadeira de prefeito de São Paulo ser ocupada por "nádegas indevidas", parafraseando o prefeito Jânio Quadros (1985-1988). No caso, serão "nádegas devidas", mas não eleitas para tal. Estão na linha de sucessão: o vice Bruno Covas e o presidente da Câmara Municipal, Milton Leite.
Em 2016, Doria "furou a fila" de seu partido, batendo nas prévias candidatos que há mais tempo postulavam a função. Para contemporizar, escolheu como vice um dos candidatos, Bruno Covas, jovem político cuja principal credencial ainda é ser "neto de Mario Covas".
Assim que foi eleito, Doria indicou Covas para uma secretaria, talvez para que ganhasse musculatura política e administrativa: a coordenação das Prefeituras Regionais, responsável pela zeladoria da cidade.
A zeladoria foi mal, a população reclamou e a popularidade do prefeito caiu. Doria tirou Bruno do cargo, com o constrangimento de desautorizar uma pessoa que não pode ser demitida. E pior, pode ser seu sucessor e, se não for bem, tornar-se uma âncora na corrida eleitoral: como pode ser prefeito quem não foi bom secretário?
O que vai acontecer até o fim de 2018 é impossível prever. Mas uma coisa é certa: a sombra de Milton Leite cresce muito cada vez que alguém acende uma vela para que Doria deixe o cargo.
Pouco conhecido fora da zona sul da cidade, Leite entra em 2018 como prefeito interino. Doria e Covas foram viajar, os dois ao mesmo tempo (o que é estranho e reprovável em data tão simbólica quanto chuvosa), e deixaram para Leite anunciar o reajuste da tarifa de ônibus.
O que até foi significativo. Quem lê os jornais da cidade com atenção já deve ter notado que o nome do vereador é frequentemente definido como ligado ao setor de transportes coletivos, que defende interesses de empresas de ônibus. É uma forma velada que a imprensa adota para sugerir o que não sabe precisar: qual a relação do prefeito interino com companhia(s) de ônibus sucessora(s) de antiga(s) cooperativa(s) de perueiros. A dúvida é importante porque a lei proíbe concessionários de serviços públicos terem cargos eletivos. O prefeito não pode ser dono de empresa de ônibus, lixo, iluminação etc.
A questão deveria ter sido esclarecida há tempos, se tornou essencial quando o vereador passou a comandar o Legislativo e ganha ainda mais urgência agora, diante das notícias sobre uma candidatura de Doria. Mesmo que ela seja como a piada mineira.
Leão Serva, jornalista, escritor e pesquisador, é colunista da Folha de S. Paulo (artigo publicado em 1/1/2018)